O estojo
Guida Linhares
Era um homem de idade, perto de completar 60 anos, solteirão, sem nunca ter amado alguém, com medo da desilusão amorosa, sequer imaginou formar uma família, pois teria que trabalhar dobrado para sustentá-la e nunca jamais fez amigos.
Humor deplorável, taciturno, revestido de dureza, assim foi sua vida, desde a mais tenra idade.
Talvez sua infância tenha sido marcada pela falta de amor, atenção e cuidados maternos, com pai desconhecido e mãe alcoólatra, que descontava nele, suas frustrações por ter sido abandonada pelo namorado e posta fora de casa quando engravidou. Então se refugiava num estojo cheio de álcool.
E ele menino ainda, com sete anos de vida, aprendeu a ler a duras penas, mas tímido, preferia se colocar no silêncio de um estojo transparente.
E assim foi crescendo dentro deste invólucro, vendo a vida passar lá fora, tal qual Platão descreve no Mito da Caverna.
Já moço, conseguiu um trabalho numa funerária ao lado da pensão onde morava e até gostava, pois ficava admirando os caixões, achava caros mas ficava imaginando em qual deles gostaria de ser enterrado.
Levava uma marmitinha e passava às vezes dez horas dentro da funerária.
Até imagino um homem dentro de um estojo emocional, sentindo-se bem (pela primeira vez aos 25 anos) num ambiente que vai embalar os mortos.
Mas eis que chega a aposentadoria e ele é obrigado a se despedir de todos os companheiros de madeira.
Cabisbaixo vai pro quarto e chora, pensando em como será sua existência dali pra frente.
Chora tanto que inunda o estojo emocional e esse se rompe e pela primeira vez, o espelho do quarto mostra um homem assustado consigo mesmo.
Pega um caderno em branco e começa a escrever, numa verdadeira catarse, quem foi no passado, quem era agora e como poderia mudar?
Haveria tempo para mudanças?
Quanto tempo teria até o ultimo suspiro?
De repente surge no vidro da janela, uma colorida borboleta!
Surpreso abre o vidro e ela adentra ao quarto e pousa em seu ombro!
Era o estímulo que ele precisava para sair do casulo.
E uma idéia brotou da sua mente, até então embotada.
Seria possível cantar num coral? Ou então participar de uma oficina literária na Casa das Culturas?
A borboleta voou, cumprida a sua missao de oferecer asas a quem ainda não sabia voar!
Santos/SP/Brasil
13/11/24
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